sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Putos maravilha


«Oisive jeunesse
À tout asservie, 
Par délicatesse 
J'ai perdu ma vie.» 
Arthur Rimbaud 

A maravilha precoce é infeliz. Assumo o apelo à ignorância, mas generalizo o meu desconhecimento: não há história de quem tenha uma vida boa a seguir a uma infância de magnificência. A infância brilhante é condição suficiente para um futuro pouco auspicioso. E os exemplos seguintes, rigorosamente seleccionados, atestam isso mesmo. 
No século XIX francês – provavelmente um dos mais bonitos séculos XIX que houve – percorria, ainda criança, Arthur Rimbaud os salões de Paris e a pila de Verlaine. Regava todos esses percorrimentos com absinto, que à época se bebia com água e açúcar e ficava assim como que leitoso – era como o Arthur gostava mais. O Verlaine foi para Londres e levou o garoto – ainda era garoto – e deixou em casa uma garota, sobejamente violada, e um ainda mais garoto, a quem não poupou as carícias alcoolizadas. Tinha ainda 17 anos, o Rimbaud, e já escrevia que tinha desperdiçado a vida; a história, como se poderá facilmente imaginar, não acabou bem. O velhote, já suficientemente afectado pela vida de fácil costume, comprou uma pistolinha e lá foi ele atirar no petit Arthur – continuava a ser garoto. Não chegou para terminar o serviço – nunca o terminou, na verdade. O Arthur, no fim, queixou-se dele e fugiu. Escreveu mais um pouco e parou antes de chegar aos 20. Perdeu a cabeça e ficou quase vinte anos quietinho, até chegar o cancro. Depois, morreu. 
Claro que nem sempre a história tem de ser digna de telenovela, com disparos e tudo. Há histórias mais comezinhas. Um exemplo é a de John Stuart Mill. Aos três anos a pobre criança, educada pelo pai James, já lia os clássicos gregos (em grego). O paizinho atemorizou-o toda a vida, obrigando-o a um regime a que nem o mais salazarento dos professores se permitiria. Expectavelmente, aos vinte anos a criatura estava a sofrer uma depressão severa. O pai, ainda que lhe tenha tornado a vida miserável, deixou-lhe uma dependência. A forma natural que o John arranjou para colmatar a necessidadezinha foi, evidentemente, contrair matrimónio com uma respeitável senhora que lhe valeu o terror perpétuo que o pai, por causa das efemeridades a que a natureza obriga, não conseguiu proporcionar. Não sem antes, ressalve-se, porque tudo isto teria sido demasiado saudável, ainda assim, ter passado anos a cheirá-la ao longe, platonicamente (como se diz por aí), e sem lhe tocar com um dedo ou uma outra coisa qualquer. 
Uns aninhos antes, em Salzburgo, nascia um mocinho, o Wolfgang Amadeus, que aos cinco anos já compunha música. Aos seis anos começava a percorrer as cortes europeias para tocar para tudo quanto era gente. Como se sabe, porque os amigos Pushkin, Shaffer e Forman nos deram preciosos relatos (tão mais interessantes que a verdadeira história; e tão mais convenientes, também), toda esta genialidade em excesso condenou o bom Wolfgang a uma vida desvairada na corte, até que caiu em desgraça. Porque o prodígio, ao lado do aplauso, acolhe a necessária (e complementar) revolta dos menos afortunados. Neste caso, o prodígio trouxe com ele um copinho envenenado e uma morte pouco santa. 
Jesus foi outro. (Julgo que escrever uma frase como «Jesus foi outro» me valerá uns anos a mais no purgatório). Quando nasceu, arrastou uma estrela atrás e vieram logo uns reis pagar-lhe em adiantado com coisinhas boas. O facto de todos os bebés da sua geração terem morrido permitiu-lhe uma certa vantagem no mercado da profecia – afinal, não havia quem mais desse conta do serviço. Era menino e já impressionava os guardiães do templo com o que seria, à altura, o correspondente mais próximo do actual comentário de assuntos correntes. Uns anos mais tarde já andava envolvido com prostitutas e a certa altura um amigo tramou-o por trinta dinheiros (um valor que não sabemos se alto se baixo, mas que para a qualidade do argumento, assumiremos como médio). Nem o pai lhe valeu no resto da história. 
Tudo isto parece coisa romanceada (que ideia) e de tempos que, de tão longínquos, não revelam nada. Engana-se quem se ilude com a aparência. O nosso tempo está cheio de gente parecida. Temos o Michael Jackson, que revolucionou a música contemporânea antes do seu primeiro roçar de carnes; aos cinquenta anos morreu e no ar ficou uma estranha perplexidade sobre o atraso. A menina Britney, em pequenina encantava; em grandinha engordava e, no processo, mostrou a boca do corpo às revistas, rapou o cabelo, partiu umas coisas e agora, Deus a guarde, é júri de coisas. O rapaz do «Sozinho em casa» era uma doçura; agora é o que se vê. E nem tudo é estrangeiro: por cá, Paulo Portas maravilhava com a sua escrita em petiz; agora funga em directo para a televisão. 
Há que ter cautela, muita reserva mesmo, na altura de promover o prodígio precoce. Eles são encantadores, mas tudo acaba a correr mal. Aos outros, a todos os outros, resta a supina sorte de terem vidas bem mais calminhas. Às vezes, pedir mais é ganância.

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