quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Os inúteis dos Camilos


A minha primeira reacção quando vi este vídeo de Camilo Lourenço foi mandá-lo foder. Afinal, há alturas em que o argumento é vão e nem o riso salva. Mas depois dei por mim a pensar que este «vai-te foder» é o que alimenta, ao fim do mês, estes Camilos. Os Camilos avaliam a qualidade das suas perorações pela quantidade de ódio que geram. E as estações, que em nada superam os Camilos, imitam o exercício. Entramos num ciclo de vício, que o ódio é um vício, no qual os Camilos se perpetuam numa bolha autista, mas polémica, e os espectadores se habituam. Por isso, e mesmo sabendo que o exercício é vão para demover o obstinado Camilo da sua ignorância (só por rebeldia poderá Camilo manter-se tão ignorante sobre tantos assuntos), atrevo-me ao esclarecimento dos eventuais leitores deste meu desconforto. Valho mais que o Camilo? Poderia ser cauteloso, mas não: sim. 
A tese de Camilo Lourenço não é nova. E até há um possível fundo de verdade nela. Em Portugal, a taxa de desemprego estrutural tem aumentado nos últimos anos. (Na verdade, e em bom rigor, o que tem aumentado em Portugal é média das taxas de desemprego dos últimos anos, não necessariamente o desemprego estrutural, que é um conceito teórico um pouco mais «exigente». No entanto, e para o exercício, assumamos que as duas coisas são o mesmo). Geralmente, aumentos de desemprego estrutural decorrem de desajustes fortes no mercado de trabalho. Pensa-se que estes desajustes podem advir de uma divergência entre as competências procuradas e as competências oferecidas, mas também de factores de cariz institucional mais profundos. Eu atrever-me-ia a dizer, assumindo a elevada falibilidade do exercício, que o problema de aumento «estrutural» do desemprego se deve, acima de tudo, ao atrofio da estrutura produtiva e não a um problema daquilo a que os brasileiros chamam «casamento» entre empregadores e empregados. Atrevo-me, também, a dizer que a análise de Camilo Lourenço, além de básica, é pouco fiel à realidade. 
Não é claro ou evidente o que as empresas, enquanto conjunto, querem. Na verdade, esta mania agregadora causa muito disparate. Olhe-se, por exemplo, para um estudo simples feito na revista Atlantic sobre o mercado americano, onde as teses camilianas também fazem o seu caminho. A única certeza que temos é que, em geral, as empresas não querem uma, duas, ou três coisas, mas muitas nos seus trabalhadores. E essas coisas podem ir dos conhecimentos técnicos (como métodos quantitativos, ciências comportamentais, psicologia) a competências não tão técnicas, como capacidade analítica, pensamento crítico, ou lógica. Naturalmente, não há cursos que reunam tudo aquilo que o mercado procura. E, portanto, sim, historiadores, filósofos e antropólogos são úteis. Aliás, as empresas bem-sucedidas tendem a empregar gente de muitas áreas. Olhemos para as principais consultoras, essas futuras referências do nosso tempo. Também a Microsoft é conhecida por empregar muitos antropólogos. E um dos criadores do Facebook licenciou-se em História e Literatura em Harvard. Já para não falar do próprio Camilo Lourenço, cuja licenciatura é em Direito Económico e cujas «passagens» (mais que muitas) por outras universidades foram sempre nestas áreas. Estes são pequenos pontos num universo empresarial de forte dinamismo no recrutamento de gente de variada formação. 
Não há evidência de uma baixa produtividade das pessoas formadas em História (um texto interessante, sobre isso da «produtividade do trabalho» pode ser lido no Ladrões de Bicicletas). O que sabemos, logo à partida, é que não serão «inúteis», como apregoa Camilo. Sabemos, também, que há uma série de preconceitos de parte a parte: os estudantes julgam que devem trabalhar «na área» (seja lá o que isso for) e os gestores de empresas são, na maioria dos casos, gente sem noções básicas de Gestão de Recursos Humanos ou de Economia do Trabalho. Além disso, podemos supor alguns problemas na qualidade dos programas oferecidos. O que não podemos dizer nunca (e muito menos em directo na televisão, a menos que queiramos ser material cómico para um público alargado) é que uma licenciatura em História produz inúteis. Arrisco-me a dizer que se houvesse melhores cabeças a pensar a RTP, seria maior a probabilidade de vermos, de manhã, um historiador a comentar os nossos dias em vez de um Camilo Lourenço. A inutilidade, no fundo, é sempre muito relativa.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Odisseia


O programa de Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington na RTP é uma obra-prima da comédia artística. A afirmação pesa minuciosamente cada uma das palavras que a compõem. Nos últimos dez anos a televisão portuguesa tem sido povoada pelos mais variegados programas de comédia. Do perene grupelho da Revista, que não tem graça alguma e é encabeçado por Monchique e Ana Bola, até à revolução dos Gatos, passando pelos Contemporâneos, o Bruno Aleixo e tantas outras minudências. Nada disto, no entanto, se equipara ao que Odisseia é. 
A história, para quem não a conhecer, é a de dois amigos, o Bruno e o Gonçalo, que percorrem o país numa autocaravana depois de o primeiro se entupir de comprimidos. Se isto parece ser o ponto de partida para um filme de má qualidade, o facto é que tudo se desenrola depois maravilhosamente. O carácter fragmentário da própria obra (chamo-lhe obra porque sim) obriga a que, para a explicar, se recorra a pequenos espisódios. Num, uma Rita Blanco louca chega pela abertura do tecto da autocaravana e entre menções a orgias, rapta os dois e obriga-os a acampar na floresta, onde mata com uma balista um rapaz das pizzas e de onde se atira de uma ribanceira. Noutro, o Belele está mal pendurado numa corda com que se tentou enforcar; depois de discutirem se o devem ou não ajudar, tiram-no de lá e levam-no com ele na viagem; ele acaba a matar-se mesmo e, já depois de morto, faz o epílogo do episódio. E há também aquele em que num café onde pedem um papo seco e um copo com água, gozam com dois mitras letrados; mais tarde, os ditos vão ao encontro da parelha e obrigam-na a jogar à roleta russa para castigo; no clímax, Bruno Nogueira manda que pare a cena: o chefe dos mitras estava a dar estaladas a sério e não «estaladas técnicas». 
O programa é inteligente sem a pretensão de ser intelectual. O guião é grotesco e trata a abjecção com a naturalidade dos grandes romances. Há morte e doença e infortúnio diverso misturados com uma gargalhada que, no fim, acaba a dar sentido a tudo. E depois há técnica, seja lá isso o que for. Os saltos entre a ficção e o real (um real que é apenas «real», porque nunca saímos da «cena»), a ambiguidade no uso dos nomes próprios dos actores e a qualidade dos diálogos compõem um ramalhete de absoluta harmonia estética. De novo, e pesando cada palavra: é uma obra-prima. Só espero, por paradoxal que pareça, que não haja mais nenhuma série além da primeira.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Amor e Morte


Os protagonistas de Amor são velhos; sobre a protagonista abate-se uma doença de velho; na narrativa há jovens negligentes; conhecemos enfermeiras que cuidam de velhos. E apesar disso, Amor não é uma alegoria sobre a velhice. Poderia ser, mas não é. A velhice é pretexto, é contexto. Evidentemente, como cabe a um bom cineasta, é tratada de forma belíssima. Mas tanto quanto as estantes de livros na sala-de-estar, ou o sotaque da Rita Blanco. O que é verdadeiramente fundamental – perdoe-se-nos a linearidade – é o amor.
Toda a película é um ensaio sobre as contingências de um amor que, ao contrário da vida, é eterno. Mais, é um ensaio sobre o confronto dessas propriedades dicotómicas: a eternidade de um e a finitude da outra. E é aqui que reside a importância do contexto. Se Amor fosse a história de dois adultos normais, este confronto estaria ausente, porque a morte antes da velhice é evento que se julga quase irregular. Não é da natureza das coisas. Utilizando para peões dois velhos, não há irregularidades; não há escapes para o embate com a realidade imposta. Vendo dois velhos, para os quais a morte próxima é uma condição necessária, não há espaço para tornearmos o problema com considerandos mais ou menos pertinentes sobre o destino. Enfrentamos o verdadeiro problema sem desvios. 
No fundo, Haneke dá-nos aquilo que é a melhor versão dos nossos futuros. O melhor que nos pode acontecer é perceber um dia que temos alguma eternidade que choque com a nossa efemeridade. E essa ideia faz-nos chorar, talvez porque também o faça chorar. Haneke tem 70 anos.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Salvem as criancinhas

Sobre a história das adopções gays e dos males que a maricagem faz à criançada, está aqui uma leitura gira. Imaginar que a homossexualidade permaneceu na espécie humana precisamente pelo valor que tinha na criação dos mais pequenos é coisa da mais fina ironia.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Networking

A duração média de um blogue do Rui é três horas. Mas continua a ser do melhor que anda para aí.

Dia macchiato

Há pouco vi, na televisão, o episódio «Relvas vai ao Clube dos Pensadores». É uma espécie de «Anita» mais gordita e mais moderna. Os senhores manifestantes até poderiam ter boa intenção, mas, no fundo, acabei a solidarizar-me com o pobre Relvas, que nem a Grândola tinha decorada e foi obrigado a improvisar. No fim, estas coisas acabam em nadas. E ainda bem. Quando acabam em alguma coisa é, geralmente, pior.

Urina

Falta-nos uma teoria geral da urina. As nossas cidades ergueram-se sobre caudais de mijo que, acredito eu, permanecem nos alicerces dos nossos edifícios, entranhados no cimento e nos tijolos e no ferro. A acumulação era inevitável: aos homens, nas ruas, importava pouco a busca pela localização ideal para vazar o baixo-ventre; já as mulheres, excelsas donas-de-casa, não podiam sustentar durante muito tempo potes cheios de líquido amarelo dentro de portas. Não que o cheiro afectasse – havia pior – mas porque os potes eram poucos e o mijo muito. Este mijo nos nossos chãos é talvez o mais proeminente rasto do que somos. Veja-se como num caos apocalíptico de um mundo de cegos, Saramago apontou precisamente as ruas cheias de merda (um dia lá chegaremos) e mijo.
Esta natureza tão singular, no entanto, nunca foi devidamente reconhecida. A função social da urina não tem expressão como tema de investigação. A academia despreza-a e, como sempre, compete à subversão artística o enaltecimento. Quando pensamos em arte contemporânea, pensamos num urinol. Há ironia nisto. Mas as manifestações da sua relevância podem ser mais subtis. Na Suécia, há percas alteradas pelo facto de se verem a nadar no mijo humano. Na Nigéria, a garotada produz energia com o próprio chichi. Na primeira temos a marca do homem no ambiente em todo o seu esplendor, a marca de um homem que não se limita a usufruir, mas que também conspurca e destrói; na segunda temos um indício de exploração, que não faltará muito para que vejamos gente a vender o seu mijo e a beber água como profissão. Se os nossos prédios são construídos sobre caudais de urina, a nossa moral colectiva também o é. Ou não fossem ferramentas das nossas criações precisamente as ferramentas com que mijamos.
Há que definir a função da urina. A urina não é excreção banal, usada para a conveniência momentânea. Tem estatuto. E esse estatuto é o da mais funda vileza. Não há bondade que provenha do mijo e qualquer tentativa de reabilitação desembocará invariavelmente em desgraça. Vejam-se as percas ou os nigerianos. Não há apelo para a maldade do chichi. Resta-lhe ser usado para o seu único fim verdadeiro: o mal. Nenhuma arma humana se lhe compara. A palavra, o punho, ou mesmo o cuspo não têm a mesma envergadura de um agarrar violento do sexo para a projecção de um jacto de urina desdenhosa. Não será por acaso que Sena terá desejado um túmulo que «lavem rindo com o seu mijo quente» as «crianças que brincando venham jogar à minha [sua] volta». O cuspo de Vian será certamente mais famoso, mas o mijo de Sena será sempre mais cruel.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Domingo

«"It is not always false of x that x begat Charles II. and that x was executed and that 'if y begat Charles II., y is identical with x' is always true of y"»

Bertrand Russel, On Denoting (1905)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Os bufos, as facturas e o meu pastel de nata

Um bufo é uma bufa com inflexão de género. É certo que, ao contrário da bufa, o bufo não tem necessariamente de ser sorrateiro – há bufaria bastante estridente. Nem, admitamo-lo, tem de ser desagradável aos sentidos – marca distintiva do género da dita. Mas, apesar das pequenas e limitadas diferenças, os paralelismos são quase infinitos. São ambos difíceis de localizar quando o grupo é grande. Os ganhos são limitados – no caso da bufa, o autor é recolector exclusivo dos proveitos, na maioria das vezes com custos para os demais; quando há bufaria, o bem poderá vir para o seu autor, mas também para alguma companhia. Finalmente, e aqui entramos no cerne da questão, que é muito importante para a gente: tanto a bufa como o bufo são injustos. Não pode haver bufa justa, pelo menos quando atirada assim de frente para os outros. E não pode, também, haver bufo justo. 
Não se pode, por isso, misturar esta história dos bufos com a outra, a das facturas. A ideia de ter um inspector ali em frente ao Martinho da Arcada a pedir-me uma factura do pastel de nata que comi aterroriza. Mas não aterroriza por fazer de mim um bufo. Aliás, atendendo à definição acima exposta, eu só poderia ser um bufo se fosse injusta a divulgação da minha informação. Pedir uma factura pelo serviço e apresentá-la não seria, portanto, bufaria. Entra, no limite, no âmbito do controlo justo, não bufo, por assim dizer. 
O problema com os senhores da Autoridade Tributária é outro. O Francisco José Viegas explica-o bem, mas teve a infelicidade (ou felicidade) de falar em cus e já ninguém prestou atenção ao resto. O problema está no facto de a minha factura ter lá informação sobre o meu consumo. E o meu consumo é uma das minhas actividades mais privadas. Exigir-me uma factura do meu pastel de nata é uma intromissão violenta na minha privacidade. O pastel de nata parece singelo, mas imagine-se que, em vez dele, eu comprei um produto para me fazer crescer o cabelo, sendo que não quero que ninguém saiba que há algum problemazinho com o couro cabeludo. Ou imagine-se que comprei pau-de-cabinda, ou uma revista pornográfica. A simples possibilidade de cruzar estas minhas compras com outros eventuais registos é só por si um abuso. Mesmo que, como nos diz a propaganda oficial, combata essa coisa da «economia paralela». A mal da originalidade, economia paralela o caralho.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Franquelim

O dr. Franquelim, atenção, não tem culpa de nada. Ou pelo menos assumo isso mesmo, para bem da inocência de um texto que tem menos culpa ainda. Não é relevante que o dr. Franquelim tenha, de facto, sido bandido. O que é relevante é que o dr. Franquelim andou, como diria a minha mãe, lá metido. Tenha essa sido ou não a pior decisão da sua carreira, a qual nos deveria interessar muito pouco. Poderemos, até, assumir que o dr. Franquelim é rapaz distraído, que lhe passou tudo aquilo ao lado, que nem reparou, ocupadinho que estava com os seus afazeres. O que não podemos, valha-nos qualquer réstia de dignidade, ainda que pobrezinha, é dar-lhe uma Secretaria de Estado. Não há aqui física quântica. Já na defesa pública que fez Álvaro Santos Pereira, aí sim, aproximamo-nos perigosamente da dita.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Pequeno homem

«Não existem mais homens livres na nossa terra, conscientemente. Claro que eles o são, pelo direito inalienável da humanidade, mas bastou uma só mentalidade tortuosa para nos tornar prisioneiros de uma tela invisível e inconcebível, bastou um regime de trinta e três anos para os tornar culpados e conseqüentemente vassalos de um crime... inexistente.
Quem negar a Salazar gênio político, erra quanto a nós. Política não é só ciência, psicologia aplicada, correlação econômico-filosófica. É também algo mais. Por vezes, os verdadeiros revolucionários, quer dizer, aqueles que lutam contra e não por, qualquer coisa, negam apressadamente quaisquer atributos ao inimigo, raciocinando simplisticamente dentro do próprio código moral. Nada mais falso. (...) 
Preconizador de uma pequena economia, falando sempre num pequeno país, criou a silhueta horrenda de um pequeno homem: o que ele julga ser o português. Católico, foi-o nas regras da falsa humanidade no trato. Mas deixou de o ser sempre que a Igreja pressupôs o gesto totalmente gratuito, grandioso. No entanto, afirmar que essa falta de qualidades reais exclui, por si só, o êxito momentâneo, parece-nos tragicamente falso. E a prova é a pequena operação salazarista: dura há trinta e três anos e, apesar de fortemente abalada, subsiste.» 

Victor Cunha Rêgo, 1959

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Putos maravilha


«Oisive jeunesse
À tout asservie, 
Par délicatesse 
J'ai perdu ma vie.» 
Arthur Rimbaud 

A maravilha precoce é infeliz. Assumo o apelo à ignorância, mas generalizo o meu desconhecimento: não há história de quem tenha uma vida boa a seguir a uma infância de magnificência. A infância brilhante é condição suficiente para um futuro pouco auspicioso. E os exemplos seguintes, rigorosamente seleccionados, atestam isso mesmo. 
No século XIX francês – provavelmente um dos mais bonitos séculos XIX que houve – percorria, ainda criança, Arthur Rimbaud os salões de Paris e a pila de Verlaine. Regava todos esses percorrimentos com absinto, que à época se bebia com água e açúcar e ficava assim como que leitoso – era como o Arthur gostava mais. O Verlaine foi para Londres e levou o garoto – ainda era garoto – e deixou em casa uma garota, sobejamente violada, e um ainda mais garoto, a quem não poupou as carícias alcoolizadas. Tinha ainda 17 anos, o Rimbaud, e já escrevia que tinha desperdiçado a vida; a história, como se poderá facilmente imaginar, não acabou bem. O velhote, já suficientemente afectado pela vida de fácil costume, comprou uma pistolinha e lá foi ele atirar no petit Arthur – continuava a ser garoto. Não chegou para terminar o serviço – nunca o terminou, na verdade. O Arthur, no fim, queixou-se dele e fugiu. Escreveu mais um pouco e parou antes de chegar aos 20. Perdeu a cabeça e ficou quase vinte anos quietinho, até chegar o cancro. Depois, morreu. 
Claro que nem sempre a história tem de ser digna de telenovela, com disparos e tudo. Há histórias mais comezinhas. Um exemplo é a de John Stuart Mill. Aos três anos a pobre criança, educada pelo pai James, já lia os clássicos gregos (em grego). O paizinho atemorizou-o toda a vida, obrigando-o a um regime a que nem o mais salazarento dos professores se permitiria. Expectavelmente, aos vinte anos a criatura estava a sofrer uma depressão severa. O pai, ainda que lhe tenha tornado a vida miserável, deixou-lhe uma dependência. A forma natural que o John arranjou para colmatar a necessidadezinha foi, evidentemente, contrair matrimónio com uma respeitável senhora que lhe valeu o terror perpétuo que o pai, por causa das efemeridades a que a natureza obriga, não conseguiu proporcionar. Não sem antes, ressalve-se, porque tudo isto teria sido demasiado saudável, ainda assim, ter passado anos a cheirá-la ao longe, platonicamente (como se diz por aí), e sem lhe tocar com um dedo ou uma outra coisa qualquer. 
Uns aninhos antes, em Salzburgo, nascia um mocinho, o Wolfgang Amadeus, que aos cinco anos já compunha música. Aos seis anos começava a percorrer as cortes europeias para tocar para tudo quanto era gente. Como se sabe, porque os amigos Pushkin, Shaffer e Forman nos deram preciosos relatos (tão mais interessantes que a verdadeira história; e tão mais convenientes, também), toda esta genialidade em excesso condenou o bom Wolfgang a uma vida desvairada na corte, até que caiu em desgraça. Porque o prodígio, ao lado do aplauso, acolhe a necessária (e complementar) revolta dos menos afortunados. Neste caso, o prodígio trouxe com ele um copinho envenenado e uma morte pouco santa. 
Jesus foi outro. (Julgo que escrever uma frase como «Jesus foi outro» me valerá uns anos a mais no purgatório). Quando nasceu, arrastou uma estrela atrás e vieram logo uns reis pagar-lhe em adiantado com coisinhas boas. O facto de todos os bebés da sua geração terem morrido permitiu-lhe uma certa vantagem no mercado da profecia – afinal, não havia quem mais desse conta do serviço. Era menino e já impressionava os guardiães do templo com o que seria, à altura, o correspondente mais próximo do actual comentário de assuntos correntes. Uns anos mais tarde já andava envolvido com prostitutas e a certa altura um amigo tramou-o por trinta dinheiros (um valor que não sabemos se alto se baixo, mas que para a qualidade do argumento, assumiremos como médio). Nem o pai lhe valeu no resto da história. 
Tudo isto parece coisa romanceada (que ideia) e de tempos que, de tão longínquos, não revelam nada. Engana-se quem se ilude com a aparência. O nosso tempo está cheio de gente parecida. Temos o Michael Jackson, que revolucionou a música contemporânea antes do seu primeiro roçar de carnes; aos cinquenta anos morreu e no ar ficou uma estranha perplexidade sobre o atraso. A menina Britney, em pequenina encantava; em grandinha engordava e, no processo, mostrou a boca do corpo às revistas, rapou o cabelo, partiu umas coisas e agora, Deus a guarde, é júri de coisas. O rapaz do «Sozinho em casa» era uma doçura; agora é o que se vê. E nem tudo é estrangeiro: por cá, Paulo Portas maravilhava com a sua escrita em petiz; agora funga em directo para a televisão. 
Há que ter cautela, muita reserva mesmo, na altura de promover o prodígio precoce. Eles são encantadores, mas tudo acaba a correr mal. Aos outros, a todos os outros, resta a supina sorte de terem vidas bem mais calminhas. Às vezes, pedir mais é ganância.