terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Urina

Falta-nos uma teoria geral da urina. As nossas cidades ergueram-se sobre caudais de mijo que, acredito eu, permanecem nos alicerces dos nossos edifícios, entranhados no cimento e nos tijolos e no ferro. A acumulação era inevitável: aos homens, nas ruas, importava pouco a busca pela localização ideal para vazar o baixo-ventre; já as mulheres, excelsas donas-de-casa, não podiam sustentar durante muito tempo potes cheios de líquido amarelo dentro de portas. Não que o cheiro afectasse – havia pior – mas porque os potes eram poucos e o mijo muito. Este mijo nos nossos chãos é talvez o mais proeminente rasto do que somos. Veja-se como num caos apocalíptico de um mundo de cegos, Saramago apontou precisamente as ruas cheias de merda (um dia lá chegaremos) e mijo.
Esta natureza tão singular, no entanto, nunca foi devidamente reconhecida. A função social da urina não tem expressão como tema de investigação. A academia despreza-a e, como sempre, compete à subversão artística o enaltecimento. Quando pensamos em arte contemporânea, pensamos num urinol. Há ironia nisto. Mas as manifestações da sua relevância podem ser mais subtis. Na Suécia, há percas alteradas pelo facto de se verem a nadar no mijo humano. Na Nigéria, a garotada produz energia com o próprio chichi. Na primeira temos a marca do homem no ambiente em todo o seu esplendor, a marca de um homem que não se limita a usufruir, mas que também conspurca e destrói; na segunda temos um indício de exploração, que não faltará muito para que vejamos gente a vender o seu mijo e a beber água como profissão. Se os nossos prédios são construídos sobre caudais de urina, a nossa moral colectiva também o é. Ou não fossem ferramentas das nossas criações precisamente as ferramentas com que mijamos.
Há que definir a função da urina. A urina não é excreção banal, usada para a conveniência momentânea. Tem estatuto. E esse estatuto é o da mais funda vileza. Não há bondade que provenha do mijo e qualquer tentativa de reabilitação desembocará invariavelmente em desgraça. Vejam-se as percas ou os nigerianos. Não há apelo para a maldade do chichi. Resta-lhe ser usado para o seu único fim verdadeiro: o mal. Nenhuma arma humana se lhe compara. A palavra, o punho, ou mesmo o cuspo não têm a mesma envergadura de um agarrar violento do sexo para a projecção de um jacto de urina desdenhosa. Não será por acaso que Sena terá desejado um túmulo que «lavem rindo com o seu mijo quente» as «crianças que brincando venham jogar à minha [sua] volta». O cuspo de Vian será certamente mais famoso, mas o mijo de Sena será sempre mais cruel.

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