segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Odisseia


O programa de Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington na RTP é uma obra-prima da comédia artística. A afirmação pesa minuciosamente cada uma das palavras que a compõem. Nos últimos dez anos a televisão portuguesa tem sido povoada pelos mais variegados programas de comédia. Do perene grupelho da Revista, que não tem graça alguma e é encabeçado por Monchique e Ana Bola, até à revolução dos Gatos, passando pelos Contemporâneos, o Bruno Aleixo e tantas outras minudências. Nada disto, no entanto, se equipara ao que Odisseia é. 
A história, para quem não a conhecer, é a de dois amigos, o Bruno e o Gonçalo, que percorrem o país numa autocaravana depois de o primeiro se entupir de comprimidos. Se isto parece ser o ponto de partida para um filme de má qualidade, o facto é que tudo se desenrola depois maravilhosamente. O carácter fragmentário da própria obra (chamo-lhe obra porque sim) obriga a que, para a explicar, se recorra a pequenos espisódios. Num, uma Rita Blanco louca chega pela abertura do tecto da autocaravana e entre menções a orgias, rapta os dois e obriga-os a acampar na floresta, onde mata com uma balista um rapaz das pizzas e de onde se atira de uma ribanceira. Noutro, o Belele está mal pendurado numa corda com que se tentou enforcar; depois de discutirem se o devem ou não ajudar, tiram-no de lá e levam-no com ele na viagem; ele acaba a matar-se mesmo e, já depois de morto, faz o epílogo do episódio. E há também aquele em que num café onde pedem um papo seco e um copo com água, gozam com dois mitras letrados; mais tarde, os ditos vão ao encontro da parelha e obrigam-na a jogar à roleta russa para castigo; no clímax, Bruno Nogueira manda que pare a cena: o chefe dos mitras estava a dar estaladas a sério e não «estaladas técnicas». 
O programa é inteligente sem a pretensão de ser intelectual. O guião é grotesco e trata a abjecção com a naturalidade dos grandes romances. Há morte e doença e infortúnio diverso misturados com uma gargalhada que, no fim, acaba a dar sentido a tudo. E depois há técnica, seja lá isso o que for. Os saltos entre a ficção e o real (um real que é apenas «real», porque nunca saímos da «cena»), a ambiguidade no uso dos nomes próprios dos actores e a qualidade dos diálogos compõem um ramalhete de absoluta harmonia estética. De novo, e pesando cada palavra: é uma obra-prima. Só espero, por paradoxal que pareça, que não haja mais nenhuma série além da primeira.

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